O valor de Wanderléa finalmente é reconhecido em autobiografia

Cresci ouvindo Wanderléa, tanto nas caixas de som do meu pai, em casa, quanto nos shows que sua banda, a Máquina do Tempo (Niterói-RJ) fazia, nos quais minha mãe participava cantando os sucessos da Ternurinha. Eu sempre soube que ela havia revolucionado a maneira de as meninas de sua época se verem, se vestirem e se valorizarem. Certa vez, fui entrevistá-la, para uma matéria que escreveria para o jornal Extra, vestindo uma calça boca de sino com de listras coloridas. Ao estilo Jovem Guarda, fui recebida por ela com um sorriso e, ao explicar meu carinho por sua história, levei um tapinha no bumbum da ídola dos meus pais. Durante todos esses anos, eu nunca entendi o fato de Roberto Carlos e Erasmo Carlos serem tão mais citados nas bibliografias relacionadas ao movimento que lideraram junto a Wandeca.  Qual não foi minha felicidade ao descobrir que meu amigo Renato Vieira – mineiro, jovem, jornalista do Estadão, um baú de informações musicais – estava ajudando a cantora a organizar suas memórias, a resgatar informações em arquivos e entrevistas, a escrever e a editar uma autobiografia. Saiu no segundo semestre de 2017 o livro Foi Assim, pela editora Record, que devorei em uma semana e meia, nessa virada de ano.

Ainda que faltem informações para sanar totalmente a curiosidade sobre a vida pessoal e profissional de Wanderléa, a autobiografia dela é, junto com Roberto Carlos em Detalhes (biografia do Rei escrita por Paulo César de Araújo), o mais ousado de todos os livros que já foram escritos sobre a Jovem Guarda. Em Foi Assim, a cantora narra com detalhes as tragédias de sua vida: a perda da irmã para uma bala perdida, o acidente que deixou o namorado tetraplégico, a morte do filho de dois anos, a partida dos pais e a batalha de um irmão vencida pela Aids. Conta também como surgiram as ideias que a levaram a gravar seus discos e como foram os processos de produção. Ressalta os altos e baixos de sua carreira com lucidez. Rememora encontros e desencontros com pessoas do meio musical e artístico em geral, com as religiões e com fãs que marcaram suas memórias. Wanderléa não esconde os dois abortos que fez e os beijos que deu – como Erasmo Carlos escondeu em sua autobiografia Minha Fama de Mau – narrando os que Roberto e Erasmo lhe roubaram nos tempos da Jovem Guarda e o assédio (que, hoje em dia, seria considerado um tanto agressivo) do Tremendão durante uma viagem do trio ao Japão para a gravação do filme Diamante Cor-de-Rosa. No entanto, ela não entrega o nome do homem com quem perdeu a virgindade (pelo ciúme de seu primeiro namorado firme, parece ter sido Roberto), o motivo do fim do namoro com Egberto Gismonti e não explora muito sua história com as bandas que teve.

Se eu não conhecesse a personagem principal dessa história ou não soubesse de fontes limpas o tipo de pessoa que ela é, acharia que a escrita é um pouco auto-reverenciada demais. Wanderléa se dá bem com todo mundo e fez muita coisa boa. No entanto isso não está só no livro, mas também na vida real. E, não fosse a ajudinha do seu ghostwriter, talvez ela não resgatasse tanto de seus feitos para não parecer egocêntrica. Não é à toa que conviveu com todo tipo de gente a vida toda, da turma da Jovem Guarda a Tom Jobim e Elis Regina (quando a dupla gravou um álbum nos Estados Unidos), passando por Caetano Veloso e Gilberto Gil (na época da ditadura militar, quando ambos estavam no exílio, em Londres). Léa, como os mais íntimos a chamam, é tão alto astral e de bem com  a vida que chega a ser desligada. Tanto que ela assume que, em anos de carreira, nunca soube quantos discos vendeu, o que significa também nunca ter tido certeza sobre estar sendo paga corretamente pelas gravadoras e editoras. Tanto que Renato Vieira sofreu um bocado para fazê-la lembrar de muitos dos fatos narrados no livro.

O esforço valeu a pena. A história é bela e a dupla (autora e ghostwriter) teve o cuidado de trazer trechos de publicações em periódicos, além de pegar leve na linguagem, para certas passagens não parecerem auto-exaltação. O livro é bonito, ousado, com capítulos curtos e cheios de ritmo, o que facilita a leitura e possibilita a aproximação de fãs não acostumados a ler. Wanderléa finalmente mostra seu devido valor. Que, para além de Rainha da Jovem Guarda, ela entre para a história do Brasil como uma artista feminina que revolucionou os modos, os meios e as formas de se viver a música.

Em tempo: prestes a terminar a escrita, Wanderléa topou me encontrar para batermos um papo sobre sua participação na faixa Mulheres, presente no álbum Por Aquelas Que Foram Bem Amadas (Pra Não Dizer Que Não Falei de Rock), de Zé Ramalho. Um parceria de Zé com Jards Macalé que teve participação também de Zezé Motta, a música marcou a cantora por falar da feminilidade e ter sido gravada muito pouco tempo após o afogamento de Leo, seu filho, na piscina de sua casa. Nosso encontro se deu em um hotel do Rio durante a temporada do musical 60! Década de Arromba!, que ela estrelou e a que assisti dias antes. Como sempre com pouca memória sobre os acontecimentos, ela passou a emoção que ficou em seu coração enquanto Renato Vieira me ajudou com dados mais específicos, que usarei na biografia de Zé.

2 thoughts on “O valor de Wanderléa finalmente é reconhecido em autobiografia

  1. Sensacional, Chris! Com poucas palavras vc descreveu essa Musa, não só rainha da Jovem guarda, mas da música pppular Brasileira. Ótima cantora, ótima voz, repertório sempre bem escolhido, tanto de versões como de inéditas, foi a única mulher que me chamou atenção é que ouvi na Jovem Guarda!
    Até hoje emociona-me ouvir “Foi assim” ou “ternura” (uma vez vc falou que era meu o seu amor…….)!!!! Vou ler e me emocionar mais umas vezes com certeza!!! Parabéns Chris! Vc é demais!

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