“Não adianta tentar desconstruir o trabalho do Zé Ramalho! Ele é daquele jeito porque tem uma razão de ser. Ele é um artista de canções de apelo sentimental, popular, até messiânico em algum sentido, que fala sobre alguma coisa que a gente não sabe o que é, mas sabe que está por aqui. São questionamentos meio metafísicos, apocalípticos, aquela coisa que tem na obra do Zé e que fala ao coração de muita gente. Quem entende a letra de ‘Avôhai’? Ninguém! Tem um misto de memória afetiva dele, do avô, do pai, da infância, tá tudo ali, tá tudo dito. A gente mexeu uma dose que acho equilibrada entre reverência e respeito. Mas eu pedi a bênção do Zé.”
Desde que Zé Ramalho da Paraíba se tornou Zé Ramalho e lançou seu primeiro disco, em 1978, poucos tiveram coragem de regravar suas músicas. Levar aos palcos também nunca foi tarefa fácil para qualquer intérprete. Imagine para um cantautor que driblou as comparações quando surgiu na cena musical brasileira e, além de consolidar uma obra, ainda teve alguns encontros profissionais com o Zé durante sua trajetória? Zeca Baleiro hesitou, sim. Mas, com a bênção dada, aceitou o convite das organizadoras do projeto BB Covers (Naná Karabachian e Monique Gardenberg) e encarou. E, depois de subir ao palco seis vezes para apresentar canções do artista homenageado, o maranhense se prepara para mais dois shows (quinta, 24/04, em São Paulo e sexta, 09/05, em Curitiba), para uma palhinha no Rio de Janeiro neste fim de semana (sexta e sábado, 25 e 26/04, na Miranda) e para gravar, em 24 de maio, um DVD no Teatro Castro Alves da Bahia.
“Divaguei sobre sobre outras possibilidades, como Martinho da Vila, Sergio Sampaio, Luiz Melodia, a faceta mais cancionista e menos pirada de Tom Zé… pensei até em Walter Franco. Aí comecei a investigar melhor o Zé… Fui grande fã dele, de carteirinha, então, resgatei os discos de vinil, busquei coisas no Youtube e fiquei muito seduzido. Acho que meu medo era a proximidade, né? É que, quando eu surgi, fui muito comparado não só a Zé, como a essa turma nordestina de 70, tipo Fagner, Ednardo. Eu, Chico (César) e Lenine fomos um pouco comparados. Mas, no final, eu estava envolvido. Dormia e acordava com as canções, pensando nos arranjos. O show ficou bonito, modéstia à parte. Tem cenografia, iluminação”, contou Zeca, durante o bate papo com o jornalista Marcus Preto no Centro Cultural Bando do Brasil de São Paulo, em 14/04.
Infelizmente, os cariocas não verão o show exatamente como ele é, com cenário, figurino, luz específica etc. Mas o repertório com sucessos e canções menos conhecidas está garantido. Acompanhado por Tuco Marcondes (guitarras e vocais), Fernando Nunes (baixo), Pedro Cunha (teclados, samplers, sintetizadores e acordeon), Adriano Magoo (teclados, samplers, sintetizadores e acordeon) e Kuki Stolarski (bateria e percussão), Zeca Baleiro tem mostrado nos shows a sua leitura do que adora em Zé Ramalho:
“Pegamos os sucessos inevitáveis da carreira do Zé. Em alguns, a gente mexeu um pouquinho. Em outros, a gente não ousou, como ‘Avôhai’, que a gente toca ipsis litteris, porque é uma música na qual não dá pra mexer uma vírgula. E peguei também umas lado B, canções que ninguém conhece, mas são lindas. Para ‘Garoto de Aluguel’, fizemos um arranjo novo, meio italiano, dramático. Em ‘Eternas Ondas’, fizemos um reggae, mas uma coisa bem vazia, não um reggae alegre, tropical. Ficou uma coisa bem soturna, diferente das versões que tanto Zé quanto Fagner gravaram. Em ‘Chão de Giz’, fizemos uma coisa naturalmente intimista, com piano e bandolim. ‘Admirável Gado Novo’ é uma música que não tem como fugir, porque ela tem uma progressão harmônica, um caminho… aí você põe um silêncio aqui, um vazio ali, uma dinâmica diferente… são sutilezas. A gente só incrementou, porque não tem muito o que fazer… tem que tentar manter o DNA da música.”
Entre as “lado B”, está uma do álbum “A Terceira Lâmina”, de 1981: “Kamikaze” surpreendeu o próprio Zé quando Zeca pediu para cantá-la, uns anos atrás, em um dos encontros da dupla, num projeto que acabou inédito.
“Só tive situações agradáveis com ele. A primeira vez foi num projeto de uma rádio do Rio chamado Novo Canto, em que um artista novo era apresentado por um veterano. Cantamos ‘A Terceira Lâmina’ juntos. Quando gravei meu segundo disco e compus ‘Bienal’, achei a cara do Zé, liguei e ele topou. Depois, nesse projeto que viraria programas do Multishow e acabou não indo ao ar, pedi pra cantar ‘Kamikase’ e ele ficou surpreso. Nessa ocasião, ele me deu o livro de poemas ‘Carne de Pescoço’ e falou pra eu escolher um trecho do poema para musicar. Batizei de ‘Repente Cruel’ e está inédita ainda. Depois, mandei por iniciativa própria a letra de ‘O Rei do Rock’, pensando no universo dele. Ele musicou e gravou no disco ‘Parceria dos Viajantes’. Essa música eu estou tocando no show também, mas com arranjo mais rap”, disse Zeca.
Tanta afinidade, para Zeca, tem explicação: “A gente tem muita coisa em comum na origem. Dylan é uma paixão comum, a Jovem Guarda é outra. E tem essa coisa que eu admiro, embora use menos no meu trabalho porque não sou tão conhecedor quanto o Zé, mas admiro, que é essa cultura enciclopédica dos cordelistas, que mistura mitologia grega com festa popular do Nordeste. Quando fiz o ‘Heavy metal do Senhor’, aquilo era uma alusão direta a uma coisa que o Zé já tinha feito uso, que é do cordel, que é a peleja do Diabo com o dono do céu, que dá nome ao segundo disco dele e é uma coisa recorrente na cultura nordestina.
E Zeca citou mais coisas em comum: “Acho que o fato de sermos nordestinos… ainda que de Nordestes diferentes, porque o Maranhão de onde eu vim é um Nordeste específico, amazônico, diferente do Nordeste mais sertanejo e mais agreste da Paraíba, embora tenha sertão também no Maranhão… mas acho que tem um universo comum e, pra quem é músico e viveu lá, tem uma herança cultural meio comum, que tá no Fagner, no Vital Farias, no Zé e tá em mim. É a coisa dos cantadores de feira que a gente presenciou.”
O maior desafio, disse o músico durante o bate papo no CCBB paulista, foi achar o tom certo para cantar as músicas de Zé Ramalho. Zeca confessou que começou a (se) encontrar no show que fez na noite anterior, em Belo Horizonte:
”Uma das dificuldades que pouca gente menciona é que o Zé, além de poeta incrível e compositor inspiradíssimo, é um baita cantor, de voz única. Ele tem um grave inimaginável, que eu não tenho nem com muita cachaça e vodca barata. Então, como cantar as músicas fazendo ressoar aquele texto dele, aquela ideia poética, sem ser um simulacro de Zé Ramalho e sendo eu mesmo? Pra mim, o maior desafio foi achar o tom certo de cantar as canções. O primeiro show foi um voo cego, mas agora eu e a banda estamos com um domínio maior. A gente fez ontem o sexto show e tô sentindo que estou começando a me apoderar do negócio.”
Gostaria de ver Zeca Baleiro cantando Raul Seixas e Zé Geraldo.