Com ingressos esgotados há mais de uma semana, a gravação para um DVD de Zeca Baleiro Canta Zé Ramalho, show do projeto BB Covers, encheu o Teatro Castro Alves (Salvador, Bahia) de admiradores de Zeca, de Zé e… de Raul Seixas. “Toca, Raul!”, brincaram os fãs do roqueiro baiano e/ou da música homônima feita pelo cantor e compositor maranhense para o disco O Coração do Homem Bomba (2008). Zeca recitou a sua Toca Raul, solicitando, antes, que substituíssem trechos por “Toca Ramalho!”.
Esse foi um dos brindes dados à plateia. A Maçã, Telegrama, Lenha, uma homenagem a Jair Rodrigues (com Deixa Isso Pra Lá e Tristeza), além de muito papo entre uma música e outra, foram os outros presentes que o anfitrião ofereceu para uma galera educada, atenta e animada com as ótimas leituras da obra de Zé Ramalho e com as divertidas histórias da relação de Zeca Baleiro com o paraibano apresentadas no palco do teatro.
“Essa que vou tocar agora pra vocês foi a primeira música do Zé Ramalho que ouvi na vida. Lembro muito bem da sensação que tive, de como fui tomado pela beleza da canção. Jamais imaginei que 30 anos depois viraria parceiro dele com a canção que acabei de tocar. Lembro bem da sensação que tive, do torpor! Na Bahia se diz: ‘Fiquei abestado’! Não é isso?”
A canção anterior tinha sido O Rei do Rock, composição que Baleiro fez com Ramalho para o disco dele de 2007, Parceria dos Viajantes. Depois de contar essa passagem de sua biografia e instigar a plateia, foi preciso mais de 5 minutos para que Zeca compreendesse as palavras que tentavam indicar como sinônimos “baianos” para “estupefato”. E, “barreado” só de tentar relembrar a sensação da época, tocou Vila do Sossego.
Essa foi uma das poucas interrupções que Zeca Baleiro fez para comentar algo. A psicodélica Não Existe Molhado Igual ao Pranto virou rock e rolou no meio do show, mas ficou para o momento das repetições a breve história de seu disco de origem, Paêbirú, o lendário álbum de estreia de Zé, gravado junto ao pernambucano Lula Côrtes em 1975 e perdido em uma enchente que assolou a sede da gravadora e fábrica de LPs Rozenblit, em Recife.
Muito diferente do show que apresentou no Rio há um mês, adaptado ao pequeno palco da Miranda, a nona edição de Zeca Baleiro Canta Zé Ramalho foi grandiosa, sob direção de Monique Gardenberg. Quando as cortinas se abriram, Zeca apareceu vestindo capa e chapéu pretos e sapato bicolor e segurando uma guitarra. Enquanto uma Lua passeava pelo cenário, ele entoava Ave de Prata, canção que deu nome ao primeiro álbum de Elba Ramalho. As luzes complementaram o espetáculo e ajudaram a dar peso a canções como A Terceira Lâmina e A Dança das Borboletas.
A dinâmica entre os instrumentos fizeram a maior diferença durante o show. Em Beira-Mar, quando Zeca trocou a guitarra pelo violão e Tuco Marcondes deixou a dele na estante para tocar banjo, o acordeon foi valorizado. O banjo também valorizou Táxi Lunar. Em Kamikase, a dobradinha cítara e percussão que iniciou a interpretação permitiu uma bela leitura de uma música super lado B do repertório do Zé.
E o que dizer do arranjo em piano que a banda criou para Chão de Giz? Zeca Baleiro é um ótimo intérprete da obra de Zé e isso ficou mais do que claro exatamente no momento em que começou a cantar o clássico acompanhado apenas do tecladista, que teve outro momento de destaque, durante Garoto de Aluguel, também arranjada para o piano e executada junto à exibição de um vídeo que ilustrou bem a sensação de vazio que a letra causa: Zeca se veste como se estivesse saindo de um “programa”. Falando ainda sobre a interpretação valorizada, Baleiro mostrou seu potencial como cantor ao fazer a capella Desejo de Mouro, trecho do livro Carne de Pescoço, de Zé.
Ao se alinhar com os músicos à frente do palco, Zeca apresentou a banda Cavalos do Cão, formada por Tuco Marcondes (guitarras e vocais), Fernando Nunes (baixo), Pedro Cunha (teclados, samplers, sintetizadores e acordeon), Adriano Magoo (teclados, samplers, sintetizadores e acordeon) e Kuki Stolarski (bateria e percussão). Contou que Fernando morou na Bahia e brincou sobre o currículo do baixista: “Ele tocou com todo mundo aqui, de Caymmi a Sarajane!” E, entre outras, tocaram nesse formato Pequeno Xote, que trouxe zabumba para o palco.
Referências baianas voltaram a aparecer durante o show, mas a mais instigante dela foi quando Zeca comparou Zé Ramalho a Carlinhos Brown: “Zé é um poeta muito singular na história da música brasileira. Ele deixa de lado o sentido lógico das coisas pra buscar a sonoridade. Nisso, ele se aproxima de nomes como Djavan e Carlinhos Brown.”
De volta à posição original, a banda deixou Zeca tocar sozinho, ao violão, uma versão linda de Pelo Vinho e Pelo Pão. E foram entrando aos poucos o acordeon, o bandolim, o pandeiro, a viola e o teclado. Já tinha dado para perceber que os músicos são um show à parte, mas Bicho de 7 Cabeças sem a letra de Geraldo Azevedo mostrou aos menos ligados que não é só o cantor o responsável pela sonoridade. Novamente com Baleiro no palco, Eternas Ondas ganhou dueto de guitarras (Zeca x Tuco) e Kryptônia virou um rock (com cenas de um filme antigo atrás).
Admirável Gado Novo também ganhou um clipe, com cenas de trabalhadores pelo mundo. Depois da brincadeira sobre Raul Seixas, Avôhai fechou o show. O bis ficou por conta de Entre a Serpente e a Estrela, com Zeca tocando bandolim, e Frevo Mulher, com o anfitrião convidando a plateia a alternar os versos com ele.
Na volta ao palco para a regravação de três faixas que a equipe técnica não julgou bem resolvidas, Zeca Baleiro aproveitou o tempo de rearrumação da cena para agradecer à diretora do projeto, ao Canal Brasil e ao banco patrocinador do BB Covers e contou como escapou de virar funcionário do mesmo. “Meus irmãos fizeram carreira lá. Naquele tempo, era como ganhar na loteria. O primeiro passo para o adolescente era ser menor aprendiz. E eles me levaram para tentar. Tinha um rapaz de uniforme marrom que parecia um maçom. Nada contra, mas parecia ordem medieval. Fui salvo da carreira de bancário… talvez eu estivesse melhor lá… mas fui salvo por uma questão estética. Se fosse azul… mas era marrom coco.”