Livro relaciona composições de Cazuza e Renato Russo à redemocratização do Brasil

Posted by Chris Fuscaldo Category: Trabalhos

Matéria publicada no blog da Editora Record (leia aqui)

Já faz tempo que o jornalista Mario Luis Grangeia começou a se interessar pelas relações entre cultura e política, mas foi analisando as letras de composições de Cazuza e de Renato Russo que ele percebeu a relação entre a obra de dois ídolos da sua adolescência com a redemocratização do Brasil. Em Brasil: Cazuza, Renato Russo e a transição democrática, lançado pela editora Civilização Brasileira, ele coloca o foco na criação das obras desde 1978, época do início do Aborto Elétrico (primeira banda de Russo) e fim do governo Geisel, até 1996, ano de morte do líder da Legião Urbana e da gravação dos dois últimos álbuns de sua banda, A Tempestade e Uma Outra Estação.

“Examinei os discos – nas bandas e carreiras solo – e as entrevistas à imprensa. Encontrei muitas entrevistas e reportagens em jornais e revistas pesquisando no arquivo do jornal O Globo há quase uma década. Foi o primeiro contato com essa amostra, que se multiplicou a partir da consulta em livros como os da Lucinha Araújo e na internet. Tive a preocupação de recuperar comentários dos dois sobre suas letras e o que queriam exprimir com elas. Como leitor, prefiro conhecer opiniões dos criadores sobre suas obras mais do que as de terceiros, que também lançam novas luzes sobre as obras, com maior ou menor argúcia”, explica Mario Luis Grangeia.

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Especialista em Sociologia política e Cultura pela PUC-Rio e mestre e doutorando em Sociologia pela UFRJ, Mario foi repórter da revista Exame e do jornal O Globo e hoje é assessor de comunicação do Ministério Público Federal. O estudo foi desenvolvido durante o curso na PUC-Rio, mas começou a ser reescrito como ensaio em 2013, ou ano em que o autor foi aluno selecionado da oficina de ensaísmo da Flip.

“No mestrado, debati algumas relações entre estado e sociedade civil e, no doutorado, voltei a focar influências recíprocas entre cultura e política, abordando visões que os governos expressam sobre as desigualdades. Tal como na PUC, meu objeto de estudo são discursos, desta vez, oficiais”, afirma.

Como surgiu o desejo de abordar os assuntos que você trata no livro através das letras desses dois compositores, Cazuza e Renato Russo?

Há muito tempo me interesso pelas relações entre cultura e política, mas esse interesse cresceu mais quando li um livro do Carlos Callado sobre o Tropicalismo e vi como a obra dos tropicalistas estava imbricada com aquele período da história do Brasil. Isso estava em segundo plano no livro dele, mas foi o que mais me atraiu na leitura. Dali veio um estalo sobre uma relação entre a redemocratização e as letras de Cazuza e Renato que ficaram tão populares.

Quais foram as letras que você analisou neste trabalho?

Analisei todas as letras, gravadas e não gravadas, mas que se tornaram públicas em livros como Cazuza: Preciso Dizer Que Te Amo e discos como o tributo do Capital Inicial ao Aborto Elétrico (MTV Especial: Aborto Elétrico). Desse universo de centenas de letras, foquei uma amostra de mais de 40 letras do Renato Russo e 30 letras e poesias do Cazuza. Os textos tratavam de seis temas: fim da ditadura, visão dos anos 60, desigualdades sociais, patriotismo, orientação sexual e ideologia. Ao retomar a pesquisa e reescrever o texto, fundi os dois primeiros temas como autoritarismo.

Para você, qual é a principal relação das letras de Cazuza e Renato Russo com a história do nosso país?

Creio que as letras de Cazuza e Renato Russo fizeram com o Brasil da transição democrática o que filmes do neorrealismo italiano fizeram com a Itália pós-Segunda Guerra Mundial, por exemplo. O valor documentário dessas obras é inegável, mas, no caso dos dois letristas, essa contribuição me parecia subvalorizada. Talvez por boa parte dos repertórios enfocar questões íntimas, como amor e identidade própria, a abordagem deles à esfera pública foi menos analisada. Uma contribuição do livro é o realce à essa faceta cronista dos dois cantores. Ele demonstra que eles não fizeram “canção de protesto” nem foram porta-vozes só dos jovens ou outras minorias. Vocalizaram visões e expectativas comuns aos brasileiros de todas as gerações.

Gostaria que comentasse os critérios que utilizou para a divisão dos capítulos por temas.

Os temas foram escolhidos a partir dos repertórios dos dois, sem plano prévio de abordar a questão x ou y. Primeiro, fiz uma delimitação das letras que discutiam traços da vida pública e não apenas temas íntimos. Depois, agrupei as letras de acordo com as leituras que traziam da cultura política e da cidadania num Brasil em tempos de transição.

Sabemos que, na academia, as ideias mudam o tempo todo. Qual era sua intenção quando começou a pesquisa e no que ela desembocou?

Na pesquisa, minha ênfase inicial era cronológica e partia de uma reconstituição do fim do regime militar e início da dita “Nova República”, vistos em paralelo com os primeiros discos daqueles artistas. Conversando com minha orientadora, a professora Santuza Cambraia Naves, ela logo me mostrou que poderia ser mais fértil a análise das letras a partir das questões.

Você não pegou o caminho óbvio. Qual foi sua metodologia de trabalho?

Um diferencial do livro é que a análise das obras privilegia o contexto em que elas foram criadas, enquanto o mais comum é centrar na análise no texto, como já se fez com letras de tantos artistas. Atentei às linhas e entrelinhas de cada estrofe com a trajetória histórica do país em mente. Como vasculhei ao máximo as declarações deles à imprensa, também os dois forneceram pistas para essa análise. O mais trabalhoso, no início, foi sistematizar as declarações públicas, o que fiz sem recorrer a softwares de apoio ou a pesquisas qualitativas.

Gostaria que falasse da descoberta do “sentido contrário ao da influência do meio na obra de arte”.

Talvez pelo ponto de partida que a pesquisa teve, minha atenção inicial ia tão somente pra influência que a sociedade tinha na criação artística. Os estudiosos, porém, sempre frisam essa via de mão-dupla entre sociedade e obra de arte. O capítulo em que a influência da obra na sociedade fica mais clara é o que trata de orientação sexual, onde discuto como Cazuza e Renato Russo abordaram a homossexualidade sem o tabu de gerações anteriores.

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