Duas vozes, alguns violões, ukelele e bandolim e dois grandes pequenos nomes começados por Z. Acompanhados desses poucos instrumentos – mas dominando os mais poderosos deles, suas vozes – Zeca Baleiro e Zélia Duncan trouxeram finalmente ao Rio de Janeiro o show que lançaram em janeiro, em Salvador, e que já rodou algumas outras cidades do país. E, com repertório surpreendente de composições próprias e canções de suas “discotecas afetivas”, além de muitas boas histórias (e piadas), agradaram a uma plateia dividida, porém complementar na primeira noite, a desta segunda-feira (22/09), no Teatro Net Rio.
O show começou solene, com Zeca tocando violão e a dupla fazendo um lindo dueto de graves em Pássaro, canção do repertório da dupla Sá & Guarabyra. Alternando vozes, ZB e ZD adiaram a chegada do pop-rock-folk-MPB e cantaram Curare, de Bororó. Ao final, Zélia assumiu o violão para apresentar (com Zeca iniciando a cantoria), do seu repertório, Tudo Sobre Você, parceria da cantora com John Ulhoa gravada no álbum Pelo Sabor do Gesto (2009).
“A gente faz um exercício para não dizer nada até a terceira música”, brincou Zélia, antes de explicar como se deu essa união: “Esse projeto está acontecendo porque várias duplas estavam programando shows, mas o projeto dançou e resolvemos fazer justiça com as próprias mãos.”
Segundo Zeca, costumam dizer que o que aproxima dois artistas é dinheiro ou sexo. Zélia anunciou que tocariam a canção que inaugurou a parceria dos dois, Se Um Dia Me Quiseres, também gravada em Pelo Sabor…, e brincou que o tema tinha tudo a ver com o que Zeca falou. Na sequência, a cantora confessou que costuma fingir ser a autora de Alma Nova, canção do maranhense registrada no álbum Baladas do Asfalto e Outros Blues (2005).
“Quando a gente resolveu juntar os terengues…”
“Juntar o que, Zeca?”
“Os terengues… Não falam isso em Niterói?”
“Não!”
“Bom, quando a gente resolveu juntar os terengues… no palco… a gente combinou que ia pensar em músicas de autores da nossa discoteca afetiva. Zélia sacou uma música incrível dos anos 70 do Erasmo e do Roberto, que a gente acredita ser mais do Erasmo.”
Do baú pós-jovem-guardista, a cantora sacou a lindíssima Grilos, composição de Erasmo Carlos e Roberto Carlos gravada pelo Tremendão em 1972, no álbum Sonhos E Memórias: 1941-1972. Ele, por sua vez, sugeriu que a parceira interpretasse Mulheres, um clássico de Martinho da Vila totalmente de acordo com o roteiro do show. E, olhando para Zeca no trecho “Mas nenhuma delas me fez tão feliz Como você me faz”, ela cumpriu seu papel mostrando, mais uma vez, que tem o samba na voz e o teatro na alma. O músico aproveitou o violão para fazer uma linha de baixo sensacional.
Juntos e antes da separação, eles ainda fizeram O Amor é Velho-Menina, de Tom Zé, e Fox Baiano, música inédita dos dois composta sobre a letra do baiano Luiz Galvão (“Poeta da MPB, nada menos que o letrista dos Novos Baianos, que tem aquelas lindas, loucas, psicodélicas e psicotrópicas canções”, comentou Zeca). Foi nesse momento que ZB assumiu um ukelele enquanto Zélia se manteve no violão.
Momento solo
Enquanto Zeca estava fora do palco, Zélia interpretou Tevê (O Coração do Homem-Bomba – Vol. 2, 2008) e Quase Nada (Líricas, 2000), do repertório dele (fazendo um trompete com a boca na segunda música). E, antes de cantar Eu Queria Ela, um clássico de Riachão – o sambista de 92 anos que ela redescobriu ao trabalhar na pesquisa para a criação do roteiro do 25º Prêmio da Música Brasileira – a cantora relembrou um episódio ocorrido logo que Catedral estourou. Em uma loja de discos de Curitiba, ZD ouviu um menino perguntar se o cara tinha o disco com a música da novela. “É lenta ou rápida?”, perguntou o atendente. “Lenta”, disse o rapaz. “Quem canta é homem ou mulher?” E o cliente: “Não sei!” (Pausa dramática) “Sou eu”, contou ZD, emendando Me Revelar (dela com Christiaan Oyens presente no álbum Sortimento, de 2001), mas errando uma nota ao se emocionar com a participação da plateia.
Zeca voltou ao palco e, juntos, eles cantaram outras duas novas parcerias: Escancarado e Museu Íntimo. Ao ficar só, ele interpretou Não Vá Ainda, da parceira com Oyens gravada em 1994, no primeiro disco dela como Zélia Duncan (depois do único como Zélia Cristina), e Opus 2, canção conhecidíssima de Antônio Carlos & Jocafi que rendeu risadas por causa de um episódio narrado pelo artista: “Uma colunista do Maranhão fez uma entrevista célebre com a cantora baiana Maria Creuza, que era casada com um deles, e perguntou: ‘Como é ser casada com Antônio Carlos e Jocafi?’ E Maria Creuza respondeu: ‘Sou casada só com Antônio Carlos.’ Virou piada estadual.”
Zeca fez piada também sobre o nome do show, porque, na verdade (apesar de eu estar escrevendo sempre Zeca antes de Zélia), o nome de Zélia vem primeiro no anúncio: “Zélia Duncan e Zeca Baleiro“. Segundo o cantor, foi questão de gentileza: “Nesse caso, foi ladies first”. Mas, maroto, contou que, quando se juntou com Fagner, recebeu um e-mail do sobrinho, na época adolescente, dando-lhe um conselho:”Tio, sempre que se juntar em dupla com outro artista, coloque seu nome em segundo lugar porque tenho pesquisado que, quando morre algum, sempre morre o primeiro. Veja os exemplos: João Paulo & Daniel, Leandro & Leonardo e Claudinho & Buchecha.” Arrancando risadas, ele seguiu: “Claro que não é o caso aqui. Aposto que Zélia deve estar pesquisando no Google exemplos que desmintam minha tese”, escancarou antes de entoar a sua Babylon, do álbum Líricas (2000).
Provavelmente no Maranhão, Estado brasileiro onde o reggae tem o seu lugar, Nos Lençóis Desse Reggae (do disco de 1994) foi a primeira música de Zélia que Zeca ouviu. “Diferente do garoto de Curitiba, achei um timbre incomum e bonito. Fiquei muito seduzido.” Ao tocar a música, trocou “Marrakesh” por “Maranhão” em um dos trechos. Zélia entrou e terminou o número com ele, emendando com Money in my Pocket, de Dennis Brown , cantor de reggae jamaicano apelidado por Bob Marley de “Príncipedo Reggae” e falecido em 1999.
Coração Aprisionado, composição de Luli e Lucina gravada por Ney Matogrosso no LP Sujeito Estranho (1980), A Natureza das Coisas, de Accioly Neto (mas famosa com Elba Ramalho), Sentidos (Zélia e Oyens, 1994) com Zélia ao bandolim e Zeca fazendo a linha de baixo no violão (confirmando ser perfeito o casamento de graves com graves e também o de graves com agudos, que ambos mostraram saber fazer com as cordas, tanto as dos violões e afins quanto as vocais) e Bandeira (Zeca Baleiro no disco Por Onde Andará Stephen Fry?, 1997) encerraram o show. O bis arrematou: Catedral (do LP dela de 1994) e Telegrama (PetShopMundoCão, lançado por Zeca em 2002).