Jorge Mautner tem sua ‘complexidade de valores’ exposta em emocionante documentário de Pedro Bial e Heitor D’Alincourt

“A complexidade de valores na família dele me deixava surpreso. Pra gente era pão, pão, queijo, queijo.”

A declaração do artista plástico José Roberto Aguilar em “Jorge Mautner – O Filho do Holocausto” ajuda a esclarecer a personalidade do músico homenageado no documentário que abriu, no Rio, a 17ª edição do festival “E Tudo Verdade” (em São Paulo a abertura foi com “Tropicália”, de Marcelo Machado). Dirigido por Pedro Bial e Heitor D’Alincourt, o filme é uma releitura do livro “O Filho o Holocausto – memórias (1941 a 1958)”, lançado por Mautner no início do século XXI, complementado por entrevistas, músicas e histórias sobre o resto da vida (e obra) do artista. O documentário é emocionante, divertido, complexo e objetivo ao mesmo tempo. Percebe-se um processo de produção minucioso e uma finalização primorosa.

O filme começa com Mautner vestido de Adolf Hitler e é seguido pela interpretação do artista para sua canção “Lágrimas Negras”. Acompanhado de seu violino e pela banda formada por Nelson Jacobina (violão), Kassin (baixo), Pedro Sá (guitarra), Domenico Lancelotti (bateria) e Berna Ceppas (teclado), Jorge interpretou músicas suas de todos os tempos em um ambiente acolhedor para um poket show que, distribuído ao longo do filme, dá brilho às histórias contadas pelo músico e pelos convidados. Depois do depoimento de Suzanne Bial, mãe de Pedro, falar sobre os imigrantes que escaparam do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial, Mautner interpreta seu maior sucesso, “Maracatu Atômico”. A canção volta em um dos momentos mais emocionantes do filme: Gilberto Gil toca o hit alçado à fama por Chico Science de frente para o amigo, que chora.

Filho da iuguslava católica Anna Illichi com o judeu austríaco Paul Mautner, Jorge Mautner cresceu frequentando cerimônias do candomblé com sua babá, Lúcia. E aprendeu a tocar violino com o segundo marido de sua mãe, Henri Müller. A avó postiça era uma francesa arrogante e o avô, um homem bom que defendia o pequeno filho de judeu da “bruxa”, mas tinha em seu quarto uma suástica. Na adolescência, ganhou da mãe um bar com bebidas alcoólicas e, em uma briga com um amigo chamado Frederico, enfiou nele um punhal, o que fez com que nunca mais ingerisse álcool. Jorge cresceu escritor, compositor, poeta, músico, mas, sobretudo, um homem livre.

No que diz respeito à vida de Mautner, os entrevistados primam pela espontaneidade. A filha Amora Mautner – que tinha vergonha do nome até entender que não foi uma homenagem à fruta, mas ao amor – declara que a psicanálise a salvou de uma criação sem parâmetros, na qual o pai andava nu em casa e a buscava na escola trajando apenas uma sunga. Em bate papo com a diretora de TV, Jorge diz que debates assuntos aleatórios em sua análise e, pressionado pela cria a dizer por que frequentar uma terapia se não sente que tem problemas a resolver, ele arrancou risos dos espectadores: “Pressão pública!”

Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Helena Guimarães gargalham ao lembrar da visita que receberam de Jorge Mautner e a mulher Ruth Mendes enquanto estavam no exílio, em Londres, durante a ditadura militar. O músico rodou “O Demiurgo”, um filme que mistura ficção com saudade do Brasil. Uma “chanchada filosófica”, segundo Nelson Jacobina, parceiro musical de Mautner desde a década de 70. Caetano canta “Eu Não Peço Desculpas” com Mautner no documentário.

Vestido de “Aladim” junto a Robertinho do Recife, Mautner gravou em 1981 o (hoje) hilário clipe “Encantador de Serpentes”, que traz a dupla fazendo a cobra sair de um cesto de palha. Sucesso com Wanderléa, “Quero Ser Locomotiva” também foi citada (e tocada) no filme, assim como “Olhar Bestial”, uma canção que dedicou a Maysa em 1958.

Mas, tirando o nudismo bloqueado por sugestão da psicanalista de Amora, Jorge Mautner foi um ótimo pai, e fez a filha ler uma série de clássicos da literatura (em troca de pagamento, mas ela leu). E é um músico que acrescentou muito à arte brasileira. Também movimentou circuitos tratando da política do Kaos (movimento artístico-literário voltado à discussão de questões ligadas à cultura brasileira). E virou um verdadeiro profeta, contrariando o comentário feito por Bial (apenas em voz) lá pelas tantas em “Jorge Mautner – O Filho do Holocausto” (“Jorge adora o papel de profeta!”):

“Eu sou o profeta!”

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