Morreu Michel Teló?

Em um acidente grave às 3h da madrugada o carro do cantor capotou e, ao que tudo indica, ele morreu ao lado da sua namorada, uma famosa atriz.

Esta notícia contém meias verdades. Michel Teló e sua namorada não morreram. Mas a imprensa trata a morte de Cristiano Araújo como se o artista fosse muito maior e mais representativo para sua geração do que de fato ele era. Parece até que quem morreu foi Teló.

É verdade, Cristiano Araújo era rico e famoso, e sua carreira estava em ascensão. Tinha alguns sucessos instantâneos. O que levou a um fato curioso na repercussão da morte. Muitos dos que torcem o nariz para o sertanejo universitário se espantaram com o tamanho da comoção em torno da morte de Cristiano. Em parte isso se deve a um desconhecimento em relação ao “Brasil profundo”, país muito evidente, mas que raramente consegue ser corretamente avaliado pelo Brasil das elites culturais. Muitos se deram conta que já tinham ouvido a voz do cantor somente quando as TVs insistentemente mostraram flashes de cenas dos DVDs do cantor. Outros nem isso. Este texto não compactua com essa ignorância. Mas quer dimensionar corretamente a importância do sertanejo universitário.

Michel TelóCristiano merece toda nossa piedade diante de um acidente terrível que deixa a família desamparada e os amigos sem rumo. Mas é verdade também que a dimensão dada a sua carreira e a cobertura das redes de televisão, e entre elas especialmente a Globo, foi desproporcional.

A notícia da morte ganhou todas as mídias por volta das 8h da manhã da quarta-feira. A partir daí veio a enxurrada de homenagens, flashes ao vivo, reportagens cobrindo a saída do corpo do Instituto Médico Legal etc. Ao longo da tarde repórteres mostraram onde seria o velório do cantor em Goiânia, o Centro Cultural Oscar Niemeyer. Cobriram a transferência dos corpos e a tristeza dos fãs.

Esse tipo de cobertura era esperada de Record, Band, Rede TV e do SBT. Os programas da tarde dessas emissoras sempre estão em busca de assunto para encher linguiça. Em vez de fofoca, um assunto capaz de sensibilizar as multidões é sempre bem-vindo. O que espanta é que a Globo também tenha entrado na mesma lógica. Depois de incessantes flashes em sua programação, com direito a uma tristonha Fátima Bernardes falando “ao vivo pelo tablet” com vários sertanejos (e até Rogério Flausino, do Jota Quest), os noticiários globais continuaram abordando a morte trágica de Cristiano e conjecturando histórias de amor eterno com sua jovem namorada e o carinho do pai com seus dois filhos. Na parte da tarde o Video Show foi alongado até as 16h30, transformando a programação da Globo num especial em homenagem ao sertanejo.

Por que tamanha ênfase da emissora? Alguns amigos supõem que deve-se ao fato de que Cristiano Araújo era um artista da Som Livre, a gravadora da Globo. Pode ser. Outros dizem que a decadente audiência da Globo não poderia ignorar a vontade das multidões digitais. Por volta das 13h o cantor estava no primeiro lugar dos trending topics do Twitter brasileiro e em terceiro no trending topics mundial. Parece algo consistente. Mas, seja como for, a cobertura da Globo não tem precedentes recentes.

Neste ano morreram duas figuras históricas da música rural brasileira: Inezita Barroso e José Rico, da dupla Milionário & José Rico. A primeira ganhou menções honrosas e foi citada em todos os telejornais de forma breve, mas respeitosa. Com José Rico aconteceu o mesmo. Nada além disso. Inezita foi homenageada na emissora em que trabalhava, a TV Cultura. José Rico ganhou homenagens em programas de tarde e também no Programa do Ratinho, no SBT. Nada de novo. Estava tudo no script. O SBT honrava a ligação histórica que tinha com o gênero desde os especiais de Chitãozinho & Xororó em 1986 e programas como o Musicamp, antecessores do famoso Sabadão Sertanejo, criado em 1991 por Gugu Liberato.

Cristiano AraújoMas a cobertura da morte de Michel Teló, ops, Cristiano Araújo fugiu a todos os padrões. Em parte porque a morte de um James Dean sertanejo (Cristiano tinha apenas 29 anos) tem especial apelo midiático. Mas, se a morte de Inezita não surpreendeu ninguém, a de José Rico pegou muita gente desprevenida.

O goiano Cristiano teve curta carreira. Assim como Michel Teló e Paula Fernandes, fez parte de uma segunda geração de sertanejos universitários que surgiu para o grande público depois de 2010. Cantou sobretudo músicas dançantes e flertou bastante com o arrocha, gênero baiano que vem comendo a música sertaneja por dentro. Um de seus maiores sucessos, “Bara Bara” (2013), incluído na trilha da novela global Salve Jorge, ia exatamente nesta pegada.

Mas, diferentemente de Teló e Paula, Araújo não alcançou a dimensão destes artistas. O jornalista André Piunti, importante blogueiro dos universitários, disse em sua conta do Facebook que Araújo chegou ao auge com menos de 30 anos. É verdade. Não há quem no meio sertanejo não conheça Cristiano Araújo. Mas desde a década de 1990 o sertanejo extrapolou todos os limites da música nacional, tornando-se a mais disseminada música de fato popular brasileira. Estar no auge dentro da música sertaneja não o faz necessariamente conhecido em todos os cantos, embora garanta um “pé de meia” para toda uma vida. Mas para ser conhecido nacionalmente e em todas as classes sociais é preciso mais.

Faça o teste com seus amigos que não gostam de sertanejo. Pergunte a eles se já ouviram falar de Cristiano Araújo. Pergunte a eles sobre Lucas Lucco. Depois pergunte se já ouviram falar de Michel Teló e Paula Fernandes. Os dois primeiros têm sucesso considerável, mas não extravasam suas origens e gênero. Os dois últimos são conhecidos, embora não necessariamente adorados, do Oiapoque ao Chuí.

E aí voltamos à questão da cobertura da mídia. Do jeito que está sendo feita, parece que Cristiano Araújo é Michel Teló. Ou Luan Santana. Não era. Não se dimensiona seu sucesso corretamente. A cobertura que está sendo feita da morte do cantor só encontra paralelo nas transmissão global do câncer de Leandro, da dupla Leandro & Leonardo, lá pelos idos de 1998, quando o velório e o enterro foram cobertos ao vivo pela emissora do Jardim Botânico. Mas Cristiano não era Leandro.

O velório de Cristiano estava lotado. Em parte pela tragédia que a todos comove. Em parte pela bonita história de amor especulada pela imprensa. Em parte pela fama em ascensão do artista. Em parte por que Araújo morreu numa quarta-feira, dia em que muitos amigos sertanejos podem dar o último adeus, já que raramente há shows marcados nesse dia. Mas há um último motivo: com a morte de Cristiano Araújo o sertanejo dá novamente sinais de que esta saindo da universidade e se institucionalizando.

Os novos artistas surgidos a partir de 2005 foram chamados, às vezes contra a própria vontade, de sertanejos universitários. Era a primeira vez na história do Brasil que a universidade brasileira, que já havia abençoado num passado longínquo a MPB e a bossa nova, era usada para salvaguardar o gênero modernizador do interior. Alguns reclamaram, como Zezé di Camargo, que em 2009 chegou a chamar os artistas universitários de “mentira marqueteira”. José Rico, que também rompeu barreiras para ser aceito nos anos 1970, também atacou a nova geração: “Acho que eles têm que se formar primeiro. Agora que eles estão começando na faculdade. Têm muita coisa a aprender”. Pois foi encontrando barreiras assim que artistas como Cristiano Araújo construíram a carreira. Às vezes sendo aceitos e incorporados pelos nomes do passado, às vezes apanhando. Como toda sua geração.

Cristiano Araújo 2Mas eis que, através de uma morte, o universitário finalmente se gradua. Pela manhã, a TV Record anunciou: “Sertanejo Cristiano Araújo e a namorada dele morrem em acidente”. Às 18h a TV Bandeirantes reprisava cenas de um show em um trio elétrico baiano com os dizeres: “Ídolo da música sertaneja morre aos 29 anos”. Na programação global tampouco houve referências ao fato de Araújo fazer parte da geração chamada universitária. O blogueiro André Piunti chamou-o de “sertanejo da nova geração” em sua coluna no site UOL, mas em nenhum momento citou o sufixo “universitário”. Sula Miranda o chamou de “cantor”. A Folha de São Paulo o chamou simplesmente de “sertanejo”. O site G1 o chamou de “cantor goiano”. Belutti, da dupla com Marcos, o chamou de uma das maiores vozes da música sertaneja. Zezé Di Camargo, Lucas Lucco, Gusttavo Lima, Mariano (da dupla com Munhoz), Leo (da dupla com Victor), João Bosco (da dupla com Vinicius), Bruno & Marrone: ninguém usou o sufixo “universitário” para descrever o artista. Araújo tornou-se simplesmente sertanejo. Na quinta-feira, seu Francisco, pai de Zezé & Luciano, disse em reportagem do Jornal Hoje que cobriu o enterro de Cristiano Araújo que sabia o quanto era duro perder um filho. E se emocionou.

O sufixo “universitário” some a olhos vistos. Um ciclo parece se fechar. Aprovados na prova discursiva, os sertanejos criam as categorias de sua própria autenticidade.

Trata-se de um processo comum na música sertaneja. Uma nova geração ascende modernizando o gênero, ultrapassando a geração anterior, que se torna tradição. Faz mais ou menos dez anos que vivemos a onda sertaneja universitária. Já de algum tempo pra cá tem havido uma certa estabilização da carreira de alguns artistas que, aos poucos, vão se tornando referência. Diante da grande quantidade de duplas, o mercado se estrangulou. O inchaço e a construção de uma identidade comum, assim como a longevidade maior de certos artistas, forjou uma identidade geracional e construiu, aos poucos um panteão.

Isso aconteceu com a geração sertaneja inovadora dos anos 1970, como Milionário & José Rico, Leo Canhoto & Robertinho e Trio Parada Dura. Nos anos 1990 eles foram ultrapassados por Chitãozinho & Xororó, Zezé Di Camargo & Luciano e Leandro & Leonardo. No boom dos anos 1990 essas duplas modernizadoras não estavam sozinhas. Eles faziam sucesso junto com Gian & Giovani, Alan & Aladim e Cezar & Paulinho, entre dezenas de outras. A clareza de que os “amigos” eram a santíssima trindade da música sertaneja veio com o tempo e com o apelo às raízes.

Chitãozinho & Xororó gravaram em 1996 o disco Grandes Clássicos Sertanejos, no qual cantaram músicas do passado, afastando-se de seu legado modernizante. A morte de Leandro em 1998 serviu bastante a esse propósito e, juntamente como programa global Amigos (1995-1999), serviu para mostrar que os sertanejos eram fiéis às raízes. O filme de Zezé & Luciano, 2 filhos de Francisco (2005), completou o ciclo, remetendo a dupla ao passado rural, longe das guitarras importadas, roupas e cabelos urbanos do início da carreira.

Faz algum tempo os sertanejos universitários vêm demonstrando que acabaram a universidade. O mercado parece ter se estabilizado. Já se pode construir um panteão dos principais nomes. Muitos deles vêm lançando discos nos quais regravam clássicos do passado, buscando o lastro da tradição. E Michel Teló, o nome de maior repercussão (inclusive internacional) de sua geração, vem gestando através do programa Fantástico-global Bem Sertanejo (e do livro homônimo) a ponte entre antigas e novas gerações. Os sertanejos pisam no freio da modernização em busca do lastro da autenticidade, buscando fugir da descartabilidade através da qual muitos deles surgiram.

Não se pode dizer ainda se o nome de Cristiano Araújo será lembrado. Quantos se lembram de Aladim, da dupla com Alan? Que homenagem digna ganhou Barrerito, do Trio Parada Dura? Não sabemos o futuro. Seja como for, a morte de Cristiano já é um marco. O que fica claro com ela é que o sertanejo deixa de ser universitário. O termo perde o sentido.

Em parte isso se deve à cobertura desproporcional da mídia. Surpreendidos com as calças na mão, erraram o tom. E, se se surpreenderam com um artista como Cristiano Araújo, se surpreenderiam ainda mais se um Luan Santana se fosse. A ênfase desproporcional demonstra, novamente, que uma parte das mídias ainda está distante do entendimento deste “Brasil profundo”, “emergente”. E o apagamento do sufixo “universitário” talvez demonstre que essas mídias ainda não suportem a ideia de que um gênero popular-massivo interiorano possa ser associado à universidade.

É por isso que se pode dizer que quem morreu foi Michel Teló. Por isso Araújo foi “telocizado”. Morreu o que o sertanejo universitário, cujo auge foi o sucesso mundial de “Ai se Eu Te Pego” (2011), representou. A morte, para aqueles que creem em vidas futuras, pode ser o renascimento. Na vida cultural não há dúvidas: a morte sempre abre caminhos para novas construções, novas identidades, novas possibilidades. Boa passagem a Cristiano Araújo. Boas novas aos graduados.

*O livro Cowboys do Asfalto – Música Sertaneja e Modernização Brasileira, de Gustavo Alonso, será lançado em 22 de julho de 2015 pela editora Civilização Brasileira e já se encontra em pré-venda em sites de livrarias online.

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