Marcos Sacramento comenta o álbum Autorretrato

Marcos Sacramento no CD AutorretratoAutorretrato é o nome do álbum que Marcos Sacramento apresenta no show que levará ao Centro Cultural Carioca nos dias 28 e 29 de novembro (sexta e sábado), depois das 22h. O disco tem 13 canções, dentre as quais dez são de autoria do cantor, e está disponível no iTunes, Deezer, Google Play Música, Spotify, Rdio e Napster. O texto que explica o processo de produção desse trabalho está assinado por ele e é tão bonito que vale ser replicado aqui. Delicie-se!

Autorretrato por Marcos Sacramento

Foi assim. Tendo a intuição como guia e o silêncio da madrugada como testemunha, fui desenhando esse meu Autorretrato, disco-símbolo que completa o ciclo de 30 anos de carreira e inaugura a parceria com a Superlativa.

Não sou um compositor que canta, mas um cantor que compõe. Na iminência de gravar esse disco, em um caminho lento, ansioso e acidentado, fui compondo as canções que aí estão. Pensamentos e constatações que me ajudaram a montar, de fato, um autorretrato, uma vez que traduzem o momento que vivo. É uma peça confessional, autobiográfica, particular: é um diário. Diário que ora compartilho com o mundo.

Quando resolvi fazer um disco autoral e menos comprometido com os rigores do samba, pensei: poderia montar uma banda pop, com bateria e guitarra, mudando tudo. Mas não. Meu “trio de ouro” Netinho Albuquerque (percussões), Luiz Flávio Alcofra (violão e guitarras) e Pedro Aune (baixos elétrico e acústico) seria indispensável a essa altura. Tínhamos que lançar mão da sonoridade coletiva que contraímos no decorrer desse tempo tocando juntos para que eu me sentisse em casa, mesmo que para escolher voar pela janela, eventualmente. Fundir essa sonoridade íntima, aí sim, com a inquietude do produtor Daniel Vasques e com as guitarras de Fabiano Krieger e a bateria de Raphael Miranda, trazidos por ele ao time. Um som cujo núcleo é regional mas não tem limites de envelopagem, que ajudou a traduzir a estranha simplicidade do conjunto de canções.

Marcos SacramentoA experiência com o samba (em toda sua abrangência e amplitude), desde o primeiro disco solo A Modernidade da Tradição (1994), estimulou fortemente essa viagem e pavimentou o caminho para que eu usasse as múltiplas referências que estão impressas no disco. Por isso mesmo deixei fluir a ironia da letra de O Samba Não Me Quis, que abre o álbum. Exponho minha delicada relação com o batuque nessa parceria com Luiz Flávio, que trouxe Fernando Vidal pra alucinar com seus rifes. O arranjo, metalinguístico, forra a cama pop-irônica da música. Em Labirinto há um arranjo não menos metalinguístico, em que Raphael faz um vigoroso solo de tambores, acentuando o clima kafkiano desse bolero-torto-cigano. Ao fim do labirinto há a desembaraçada balada Bichos, minha declaração de amor a meus companheiros de vida há 12 anos, Raja e Preto. A observação contínua constrói a narrativa.

A corrente do disco deságua Na Rua, outra balada confessional – embora na terceira pessoa – que descreve pedaços da cidade pelos quais flanei e por onde já me encontrei intensamente perdido. O assobio desenganado e distraído de Daniel ajuda a compor o clima de solidão da música.

Ainda que o disco fuja da “norma” do samba há, sim, sambas meus. O primeiro deles é Sacada, um samba-observação. Ainda há, mais adiante no disco, Qualquer Um e Sereia na Avenida.

Pá!, uma onomatopeia do tapa de não ver correspondido o amor desperdiçado, abre caminho para Dois Rios, fado que compus sobre letra do poeta português Tiago Torres da Silva. Compor um fado, eu? Por que não, se cresci ouvindo minha mãe cantando sucessos de Amália Rodrigues enquanto refogava o feijão? Os slides da guitarra de Fabiano colocam esse fado na contemporaneidade. Segue-se Três Horas da Noite, balada sentimental que expõe a madrugada em sua essência solitária. Minha verve notívaga, aliás, é assunto recorrente.

Kurtz Weill tem sua responsabilidade por Sem Sal, uma canção de cabaré eletrônica que anuncia uma espécie de abandono paranoico. Além das programações, Daniel assina o arranjo para tubas e euphonium que evoca as fanfarras do leste europeu pelas quais é tão interessado. Enigma é aquela narrativa cifrada pela própria vivência do autor – não precisa entender.

Antes do fim, o disco ainda tem seu Carnaval, parceria com o Zé, meu amigo Zé (Paulo Becker). Um samba derretido e remodelado numa levada híbrida que ganha o molho arrepiante de Gabriel Policarpo e Bernardo Aguiar com seu Pandeiro Repique Duo.

Eis meu autorretrato.

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